quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre Homens e Muletas.

Há tempos difíceis que, em alguns homens nascem asas.
Outros compram muletas e não andam mais.
Mark Twain.
Maringá, Paraná, véspera de Natal de 1993. Dezoito horas da tarde, um Dodge Polara marrom com o vidro do passageiro traseiro quebrado, estaciona a frente de um mercadinho. Dentro do carro, Magno, Max, Guilherme e Marcão. Todos decididos a não chegar em casa, não naquela véspera de natal, com as mãos vazias. O motivo da parada foi pra uma breve reflexão, esta que ficaria um pouco mais a beira de uma solução se fosse feita perto de um mercado, segundo Max. O que estava por vir seria uma operação que, segundo o mesmo, sempre dera certo, arriscadíssima, mas se empenhada com a máxima originalidade e desempenho, era tiro-e-queda: Comprar alguma coisa sem um real no bolso, pior, num local onde nunca te viram antes.

E continuavam ali, parados, pensando e esperando por um milagre, talvez algo como: O gerente do banco, vestido de Jesus Cristo, chega, abre a porta do carro e entrega a cada um uns deis mil reais, um talão de cheques com especial, alguns cartões de créditos. Ou ainda o dono da mercearia, vendo o desalento dentro do carro, chamar a todos e dizer: Porque vocês não entram, escolhem o que querem, a gente marca pra vocês pagarem depois, aproveitam e levem algum dinheiro pro ano novo. Podem voltar quando quiserem.

A tensão aumentava à medida que os minutos idem. Tinha que ser feito algo rápido, a noite caíra, e com ela quase todas as esperanças. Não tinham mais nenhuma “folha” daqueles cheques que, vez por outra, pegavam emprestado na praça com o seu Joaquim. Joaquim era um deficiente físico que vivia disso naquele ano. Esse não era o nome dele de fato. Ninguém nunca soube o verdadeiro. Ele se gabava disso dizendo que a profissão exigia tal segredo. Você sempre encontrava ele na praça, mas nunca o via. Ele te achava, você chegava na praça e do nada, ele aparecia. Guilherme brincava dizendo que ele era o Copperfield do mercado informal de investimentos. Você só precisava estar no lugar certo (a praça) e ele sabia quem você era e o que queria, e encostava disfarçadamente do seu lado como uma espécie de santo que baixa, com aquela cara mansa e olhar ameaçador, mas resolvia as coisas.

Os caras: Magno tinha perdido o carro no mesmo ano pra uma seguradora. Era um amador ainda na arte dos negócios, mas desde já mantinha a postura de um líder, e de uma forma bem pacifica a turma até gostava que ele desse a última palavra. As coisas que ele arranjava sempre davam certo. Pra se ter uma idéia, a única coisa que aquela turma tinha de bom e em comum naquele ano, além do fato de estarem duros, era o de morarem num edifício que Magno acabara de “comprar”. E de andarem no mesmo Dodginho, de Max.

Marcão acabara de fechar uma “empresa” que tinha com sua mulher em Campo Mourão. Guilherme só estava o arco da tanga, investira todo seu dinheiro comprando e vendendo erradamente celulares que aquele ano tinham acabado de chegar no brasil. Max mal acabara de sair do primeiro casamento, entra em outro que já vem com um filho, e acabara de confeccionar mais dois, fóra uma filha do ex-casamento e agora um adotivo que a atual trouxera. Negócios? Nem pensar. Max sempre fora um markequeiro de primeira, sabia como ninguém ganhar dinheiro, mas no quesito gastar, era melhor ainda. E isso por sí só bastava pra que fizesse parte daquela trupe. Mas a verdade é que as coisas iam de mal a pior pra todos naquele ano.

E eles continuavam ali, pensando. Ninguém, não que eu saiba, tinha gosto pra armas e nem tendências pra esse tipo de estratégia. Mas Marcão, apesar do medo, bem que pensou nessa remota possibilidade. Guilherme, pra desbaratinar um pouco, acendeu um cigarro, atravessou a rua e foi pra dentro da mercearia. Só pra “passar um pano” segundo ele, como se fosse especialista no assunto. Max continuava parado. Pensando que já não havia outra possibilidade, a não ser a que ele mais temia. Não tinha jeito. Era tudo ou nada. Já se passara meia hora ali parados e qualquer outra coisa podia acontecer, sei lá, alguém desconfiar, chamar a policia. Aí meu amigo, o fim de ano seria realmente o caos.

Guilherme demorou uns 10 minutos, voltou, entrou no carro e esbravejou.
- Êêêêitaporra, pessoal. Agora fudeu! Ta lá dentro o dono do negócio, a mulher do dono do negócio, o genro do filho do dono do negócio, o mercado está cheio de gente e ainda acho que tem um cara lá que me conhece. Um credor, eu acho. (Guilherme era finíssimo nas palavras). Apagando o cigarro e jogando pra fora do carro conforme um “pedido” de Magno, ele agora dispara. Em alto e bom tom pra que todo o quarteirão ouvisse.

- Max, se tiveres que fazer algo, vá hômi! A gente fica aqui no dodginho, orando pra te dar uma força.
Marcão tremia e temia que algo desse errado e que iriam todos presos, com dodginho e tudo, visto que nem a copia do documento do coitado existira mais. Ele se encolhia no carro parecendo uma criança e balbuciava umas coisas negativas que ninguém dava ouvidos, quase sempre interrompidas pelos gritos de Guilherme.
- Cala a boca Marcos. Deixa a gente pensar porra!

Na verdade não havia mais nada a ser pensado. A única coisa que todos ali pensavam era em algo pra ser comido. E enquanto Guilherme e Marcão discutiam, era nisso que Magno e Max pensavam com mais afinco. Afinal todos ali tinham filhos dentro de casa e pra complicar; Final de ano.

Magno tinha, sempre teve, excelente trato com as pessoas e um poder de persuasão raramente visto em outro que eu conheça. Mas não tinha o tino, alma ou sei lá o nome que dão a isso pra chegar lá e simplesmente dizer: Olha, sabe o que é; eu e meus amigos ali estamos sem dinheiro e precisamos comprar umas coisas pra pagar depois. Ele até que pensou, mas não era o mundo de Magno. Estrategista que era; sabia dos riscos da operação e sabia também que se algo desse errado, comprometeria todos seus colegas. Ele estava além disso. Tempos mais tarde viria a realizar feitos que faziam este parecer um grão de areia. Mas naquele dia, paradoxalmente, também dependia dessa operação.

E a discussão continua...
- Guilherme, vamos deixar Max e Magno aqui, pegar um ônibus e comprar um cheque com o Francisco! Aí a gente volta e operamos, eu e você, se der certo né.
- Vai cagar rodando Marco!!! Deixe de ser down e cala essa boca.
E eles discutiam, e as horas passavam. E, mesmo sem nenhum deles nunca ter entrado naquele estabelecimento, Max decidiu. Eram seis e quarenta da tarde.

Ouve um silencio abissal dentro do carro por um instante, quando Max disse:
- To indo pessoal. Vamos entrar para a história, brincou ele.
- Força velho! Disse Guigui com olho no olho.

Esse “força velho” funcionava como um código, uma força de verdade que uns davam aos outros em situações como esta. Ninguém o usava inadequadamente. Longe de ser um bando de verdade, igualavam-se em muito a velha Cosa Nostra ou aos Corleones da Cicília que também adotavam códigos, palavras, olhares e outras coisas que eram usadas apenas pelos da “família”. Meia palavra ou um simples olhar bastava pra que se soubesse o que estava acontecendo. Filosofava-se menos e agia-se mais. E isso, de certa forma os unia, principalmente em momentos como este. Jamais se fazia algo que não fosse por todos, e dividido por todos. Depois desse evento e com o crescimento natural do clã, foram inseridos outros códigos como “não sei se eu digo” ou “pois não” ou ainda o velho “só um burro não toma castanhoto”. Max, talvez pela sua aversão ao terrorismo e bom humor a flor da pele, foi o grande inspirador da maioria desses códigos, imediatamente aceitos e usados até hoje.

Max olhou pra todos e para todos os lados, enxugou o rosto, colocou o palitó e abriu a porta. Fazia um barulho enorme o tenso movimento das pessoas e carros naquele final de tarde e caia uma chuvinha bem fina de verão. Quando colocou os dois pés pra fora, esguio-se como se fosse preparar para uma olimpíada ou partir num ônibus espacial. Desligou o celular e colocou-o na orelha fingindo estar falando com alguém. Atravessou a rua como se fosse um Lorde, falando, esperando educadamente os carros passarem e gesticulando e falando e falando. Dentro do carro não se ouvia nada, a não ser os suspiros de lamento e uma prenuncia de “ai-meu-deus” de Marcão.

Primeiro ele fez um reconhecimento da área. Era uma dessas meio-mercearias e meio-mercado onde todos se conhecem, onde se tem de tudo e as pessoas vão pegando as coisas, organizam uma pequena fila e pagam suas compras com cartão, dinheiro, e pra felicidade total da nação e de Max... Com umas fichinhas que ele ainda não sabia como funcionava. Mas de uma coisa sabia, era o bom e velho fiado.

Nesse momento, ele faz um sinal pra turma do outro lado da rua com um OK deste tamanho pra acalmar os maus ânimos. O dodginho todo se mexe tamanha foi à euforia dentro do coitado, que naquele momento também deve ter festejado. Marcão já podia sorrir e Guilherme já fazia planos para o ano novo. Guigui, como era chamado queria chester, apesar de ainda não saber a diferença entre este e o frango. Magno, no banco da frente do carro, analisava tudo, como um bom ombudsman e futuro homem de negócios, teria que estar pronto pra entrar em ação numa eventualidade.

Depois de analisada a situação, era a hora do vamos-ver. Max começou a passar a impressão de que era de casa, cumprimentando as pessoas e a de que não estava com pressa. Aumentou então o volume de seu ouvido e começou a ouvir nomes. Dona Josefa, seu Raimundo, Ana e etc.
- Há, boa noite doutor Antonio. Tenha um Bom natal.
- Pra senhora também dona Carmem. Não sei como à senhora consegue trabalhar num dia como este. Se eu precisar de novo, eu ligo e a senhora manda entregar, ok.

Pronto. Era com dona Carmem que Max precisava gladiar. Então ele começou a compra propriamente dita. Pensou em Guilherme e pegou dois chesters e alguns frangos pra que ele visse a diferença. Magno merecia suas picanhas e alcatras. Não havia naquele grupo ninguém que apreciasse mais carnes que ele. Ainda hoje é assim. Marcão foi presenteado com várias iguarias, coca-colas, alguns sorvetes e aqueles guaranás-calmentes que ele adora. Juntamente com ene tipo de carnes, é claro. Max pegou um pouco de tudo. O fato é que as coisas se misturaram e só pode ser dividido mesmo quando se chegasse em casa. Agora o importante era passar com tudo isso num caixa que nunca te viu, e com literalmente zero no bolso. Passaram-se trinta longos minutos. A tensão dentro do carro aumentara, tamanha era a calma de Max. Marcos já se dava por vencido.
- Prenderam ele lá dentro, não é possível.

Chegou sua vez na fila. Apesar de não fumar maconha, Max podia ver através da lente embaçada de seus óculos a doce face de Carmem com uma leve aureola na cabeça e um lindo lago azul onde moravam passarinhos e reinara a paz eterna. Anjos tocavam harpas e palavras como “nãos”, “não te conheço” ou “vou chamar a policia” não existiam. Ele apostava que ela usava sandálias e com o canto do olhar pode notar que havia um cajado encostado no balcão. A impressão de que estava negociando com uma santa foi o que lhe motivou a continuar com a coisa. Dentro do carro apenas os dois mais confiantes respiravam. O administrador e o que havia lhe dado a Força. Marcão? Esquece.

- Mais alguma coisa? Perguntou dona Carmem. Seu afeto, pensou ele.
A conta tinha dado exatos Seiscentos e Cinqüenta e Dois Reais. E tinha mais três pessoas na fila atrás dele. A primeira coisa que lhe veio – e acredite – aquilo foi de improviso, foi a de que tinha esquecido a carteira no carro. E funcionou.
- Dona Carmen, por favor, deixa essas pessoas passarem na fila, que vou no carro buscar a carteira e volto em segundos, ok.
- Claro Sr. Max, afinal é final de ano.
Ela o chamou pelo nome, e isso era “macuco-no-borná”.
E lá se foi meu amigo, atravessando a rua com a calmaria de uma Madre Tereza, e com as mãos abanando, para o desespero dos que ainda estavam vivos dentro do carro.
- Fudeu de vez! Exclamou Marcos

Ele não demorou mais que uns três segundos pra pegar a carteira. Dizem que nesse momento sua pele e sua voz eram brandas como a de uma santo de verdade, igual a Moisés quando desce do monte depois de ter falado com Deus. Marcão chegou a descer do carro e pensou em sair correndo avenida a fora. Guilherme pediu pra que não se esquecesse do seu chester e Magno ficou calado. Sabia que tal ato fazia parte do enredo, frente à calmaria do amigo. Max fez meia-volta, atravessou a rua e chegou ao caixa. Parecia um Hemphed Bougard em Casablanca. Desta vez sem filas no caixa, apenas ele, dona Carmem, suas compras em cima do balcão, algumas coisas espalhadas pelo chão, incluindo uma vassoura que pouco antes confundira com um cajado. Algumas pessoas ainda faziam suas compras as pressas, o lugar estava quase fechando. Aí um santo baixou no cara, não é possível.

- Dona Carmem. Olha só! Por uma fatalidade, esqueci minha carteira e todos os documentos na casa de minha filha, onde estamos passando o final de ano. Minha filha mora longe, mas moro aqui do lado, todos os dias minha esposa vem aqui e posso buscar um talão de cheques. As compras podem ficar aqui, se a senhora quiser.
- Bom, creio que não há necessidade. Podemos “anotar” na conta de sua esposa. Como ela se chama?

Era a peleja do diabo na terra de meu Deus. Do dodginho dava pra ver uma pequena nuvem de fumaça escura pairando sobre aquele lugar. Max não tinha mais tempo, tinha que haver um nome, e um bom nome, sua vida dependia disso, e depois de tanto tempo, até sua reputação frente aos colegas. Ele tenta de todo jeito lembrar de algum que ouvira no tempo que esteve dentro daquela merda, mas seus amigos embaralharam tudo com aquelas ene perguntas. Mas ele não lembra, e arrisca um, não tinha outro jeito, e com um sorriso monalistico, ele declara:
- A Ana. Minha esposa é a Ana. Anota aí que ela é de pagar toda semana, senão eu fico puto!

Dona Carmem procura num dos fichários que tem na sua frente e não acha nenhuma com o nome de Ana. Era o fim. Ele chegou a pensar na possibilidade de pedir ao açougueiro uma faca pra um eventual suicídio, mas resolveu fazer um check-up da situação. Talvez dona Carmem tivesse o mal de Parkinson, Alwsheimer, quem sabe? Talvez se esquecesse das coisas. Talvez o amasse tanto que não estava nem aí pra nenhum nome, pensou. Aí, ele arriscou aquilo que seria sua última e derradeira chance. Mais tarde isso ficou conhecido como o “não sei se eu digo”.

- Dona Carmem. Olha só. Sei que é natal e que as famílias tem que estar em harmonia, mas devo confessar, proibi minha senhora de manter quaisquer carteirinhas de anotações de fiado em qualquer lugar que fosse. Sendo assim, obriguei a mesma a pagar as contas antes do vencimento. Talvez seja por isso que a ficha dela não se encontra neste fichário.
Era o fim do mundo. Mas ela conhecia uma Ana. E todas a galáxias, todo o cosmo e sistemas solares contribuíram pra que ela não ligasse pra essa bendita.
- É seu Max, o senhor tem razão.
E o universo contribuiu de fato.
- Apenas assine aqui pra que eu mostre ao pessoal da manhã e que entregue a dona Ana.
- Muito obrigado, a senhora foi muito gentil. Tenha um feliz natal e um...

Do ponto de vista técnico a operação foi um fracasso. Se tivessem ensaiado aquilo, não teria dado certo nunca. O fato é que as coisas foram acontecendo e acabou no que deu. Nada mais simples, óbvio e que não teria a menor chance de acontecer de novo. O que contou pontos foram os quesitos coragem e necessidade. Tudo bem, podemos incrementar um pouco de cara-de-pau. Não ouve técnica, ensaios ou enredos. Houve sim, um “pulo no abismo” que de vez em quando alguns membros dessa turma até hoje o faz quando recebem de um amigo o “força velho”. A bem da verdade as coisas naquela época ainda eram meio testadas. Hoje essa turma opera dentro de estatais, em aviões particulares e conglomerados internacionais. Mas isso é uma outra historia. Mais tarde eles pagariam dona Carmem.

Max pegou suas coisas e saiu com os passos mais lentos do que quando entrou. Já o coração.. Aprendeu isso vendo Al Pacino em O Poderoso Chefão. Fez questão de fazer igual ao ídolo, jogando a arma do crime (a caneta) na calçada. Teve que pedir ajuda a Guilherme pra carregar as sacolas, que veio com um sorriso deste tamanho. Marcos estava desmaiado. O clima de tensão era enorme e Marcos retomou sua consciência e começou a revirar as sacolas. Magno, percebendo o nervosismo estampado na cara de Max, profetizou em off.
- Liga não meu velho! Em bem pouco tempo estaremos rindo dessa situação.
Mal o carro sai do lugar rumo a festa do outro lado do bairro e a cidade toda pôde ouvir o grito estridente, agudo e glorioso de Guilherme no celular com sua esposa:
- Êêêêitaporra!!! Minha filha. Vamos comer chester!

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