terça-feira, 27 de março de 2012

Aluga-se. Tratar Com o Proprietário.

Aquele não era definitivamente o ano para Mário. Em janeiro dera fim no seu terceiro casamento, e com ele, dois filhos que ainda careciam de pensão. Há muitas formas de se acabar com um casamento, mas a de Mário foi surreal e com doses excessivas de improviso. Sábado de manhã, ele e a mulher lavando o carro como todo fim de semana. De repente ela acha dentro do carro um fio de cabelo enorme, preto, obviamente feminino e que com certeza não seria dela. E depois de dez anos de casamento, com o fio de cabelo na mão, sem pestanejar ela diz a Mário num tom meio rude, meio sem pensar, meio afirmação, meio interrogação:

- Você vai embora agora!

Ele, também sem pensar, mas menos rude, como se aquilo um alivio fosse, não responde e não questiona. Entra em casa, pega um par de sapatos, a carteira, e de short mesmo entra no carro, dá a partida e some. Do retrovisor pode ver, pela terceira vez, sua última chance de, talvez, ser feliz de fato. A partir daquele momento não se casaria novamente. Foi grotesco, penoso e inesquecível ver sua ex-mulher ali, em pé, agora com o filho caçula a sua volta, com a mangueira ainda jorrando água, como que se despedindo, como que chorando, como que sozinha. Um gosto amargo de silêncio descia pela garganta enquanto ele procurava o que todo homem deseja nesses momentos: o primeiro bar aberto, onde pudesse enfim estar só.

Dormiu em hotéis naquela semana e quando o pouco do dinheiro minguou, foi morar com um amigo. Um daqueles com mais problemas que ele. André, amigo de infância, não deixaria o amigo sozinho e o ajudava no que pudesse. Não fosse a incompatível índole de André, as coisas teriam sido mais fáceis. Ficou com André apenas trinta dias. Para não usar a droga do amigo, se especializou numa coisa que ele chamava de “ócio permanente criativo” que consistia em encher o tanque do carro, chegar num desses trevos qualquer e apontar com o dedo com os olhos fechados qual destino tomar. Seguia a vagava pela cidade e por cidades que ele ainda não conhecia.  Houve épocas em que o carro só parava por pura falta de combustível, e se noite fosse, ali seria seu dormitório. Mas isso teve um fim. Quando a grana acabou de verdade, quando a terceira parcela do financiamento do carro venceu e quando não havia mais emprego e nem o que fazer, ele viu uma coisa que lhe chamou a atenção. Numa dessas casas antigas, num bairro distante, numa cidade qualquer, a placa de “aluga-se, tratar com o proprietário”.

O problema como todos sabem não é você alugar um imóvel, e sim alugar de uma imobiliária por causa da burocracia, e aquela placa seria sua salvação. Parou o carro, bateu palmas e venho uma senhora, dona Ana. Ela tinha um olhar doce, confiante, amigável e parecia que conhecia Mário a anos. Isso foi um alivio e um aval ao mesmo tempo. Ela morava na frente numa casa antiga de madeira e o imóvel a ser alugado era o dos fundos. Uma construção tipo edícula, com cozinha, quarto e banheiro. Entraram, ele viu o imóvel e apesar da sujeira e da impressão de abandono que o imóvel tinha, fecharam negocio. Pagou a ela o aluguel adiantado, pegou as chaves, entrou, tomou um banho e disse a ela que ia sair, comprar umas coisas para limpeza e buscar roupas. Ela disse que saia muito, ia a casa de filhos e que só estaria em casa em fins de semana, mas que se ele precisasse de alguma coisa era só ligar. Ela deu a ele o número de seu celular, ele o inseriu na agenda, “kitnet dona Ana”, e se despediram.

As coisas começaram a melhorar, pensou ele. Naquela semana recuperou parte da empresa que tinha deixado pra ex e viu os filhos menores. Pode ir com eles a shoppings e comprar presentes. No fim de semana dona Ana apareceu e perguntou se estava tudo certo. Ela, dessa vez estava acompanhada com uma das filha mais novas. Apresentou a Mário, e se foram rapidamente.

Os dias se passaram e as coisas voltaram a normalidade. Ele começara a fazer amizades com vizinhos, mas só com ois e olás com as mãos enquanto entrava e saia da garagem, mas nunca se aproximou de vizinho algum. Mário sempre fora muito reservado com relação a isso. Mantinha uma vida intima reservada, afinal era uma nova vida e não podia perder tempo em ficar falando com vizinhos. Ele só se incomodava com a questão de alguns o ficar olhando por horas. Ele aparecia no quarteirão e percebia que as janelas se abriam e só se fechavam quando ele guardava o carro. Mas isso não o incomodava de verdade. As pessoas são assim e vivem pra falar da vida alheia.

O primeiro mês de vencimento coincidiu com um fim de semana e ele pode pagar o aluguel pessoalmente. Ele disse que não precisava de recibo pois aquela relação foi iniciada na base de confiança e assim seria, e dona Ana concordou pois como ela dizia, tinha “senhor Mário como persona mui buena”. Naquele sábado ele estava muito cansado e almoçou num restaurante. Chegou em casa por volta das três da tarde e quando entrou pode ouvir dona Ana conversando com a filha, dessa vez, a mais velha. Falavam coisas desconexas quando aumentavam a voz (meio que de propósito) e quando diminuíam parecia mais claro e objetivo para Mário.

- Temos que ajudar uns aos outros filha querida. Não tenha medo.

Mário ouviu essas e muito mais coisas e se deitou. Tinha acabado de almoçar, estava com sono e estranhamente a presença de dona Ana o trazia a sensação de que estava tudo bem, e realmente as coisas estavam melhorando. Lembrou-se de quando era criança, quando fingia que dormia e podia ouvir as conversas de sua mãe com o pai. Aquilo o tranquilizava e a sensação de paz e segurança o fazia adormecer. Dormiu como uma criança naquele sábado.

Quando acordar, pensou ele, devo me aproximar mais um pouco delas, puxar assunto, essas coisas. Ao acordar elas já tinham ido, mas deixaram um bilhete embaixo da porta de bom fim de semana. O sentimento de solidão pela primeira vez o invadiu desde a separação. Ele estava meio que se apegando a presença daquela senhora. Seu olhar o penetrava deixando-o em estado de profunda paz.

Os dias se passaram e no vencimento do segundo mês dona Ana não apareceu. Ele ligou no número deixado e ninguém atendia. Isso não o preocupou de princípio, quem sabe ela apareceria no outro fim de semana. O aluguel precisava ser pago. Outro sábado chegou e dona Ana nada. Dessa vez, ele pode sentir, havia alguma coisa errada. Foi olhar pelo buraco da fechadura e pode constatar que, estranhamente, não havia móvel algum no interior da pequena casa. Mais estranho ainda foi o fato de ver que na fechadura da porta principal havia, ao invés de fechaduras normais com chaves, haviam aqueles ripões com pregos de todos os lados, a porta estava selada, e teias de aranha cobriam a fechadura. Chaves não abririam aquela porta.

Mário ficou por muito tempo no portão, esperando talvez, que ela viesse de algum lugar. Mas dessa vez o que o incomodava mesmo, era o fato de muitos vizinhos estarem a espreita. Aquilo já estava passando dos limites. Resolveu sair, voltou tarde e enquanto pegava no sono podia ouvir muito vagamente a conversa de dona Ana com uma de suas filhas. Levantou-se rapidamente, acendeu a luz, mas era só ilusão. Estava tudo às escuras e um silêncio abissal reinava nas duas casas.

No domingo pela manha ele não resistiu, foi falar com um vizinho, aquele que o fitava a mais tempo. Talvez eles soubessem de alguma coisa. Não foi preciso chamar o vizinho, era só ir ao encontro dele, como se ele já o esperasse a tempos. Bom dia, disse Mário. Desculpe o incomodo, mas o senhor conhece dona Ana? Como sabe moro aqui a uns dois meses e ela não aparece a duas semanas.

O vizinho parecia que tinha visto um extraterrestre, seu cabelo se arrepiou e ele ficou totalmente desconsertado e andando pra trás, chamou a esposa. Filha, disse ele, esse vizinho que todo mundo está comentando diz que não fala com dona Ana a duas semanas. A vizinha só não desmaiou porque, segundo ela, já sabia o que estava acontecendo. Ela pegou Mário pelas mãos e disse numa voz branda como se soletrasse cada palavra “essa casa está abandonada moço, dona Ana faleceu já fazem mais de 10 anos”.

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