quinta-feira, 8 de março de 2012

Cabelos Brancos.

Cela 06, Raio 04, CDP I de Osasco (Centro de Detenção Provisória I de Osasco-SP), 10hs da manha, 90 dias sem noticia alguma. Ate essa data eu não tinha conhecimento ainda sobre o real motivo de minha prisão. Um desejo apenas me sondava por aqueles dias: O de saber alguma coisa, fosse ela qual fosse. Até mesmo uma sobre meu fuzilamento me contentaria. Os dissabores de um detento não se resume apenas nas agruras do quadrado em que vive, umas das piores é a falta de informação. Ninguém te diz nada, nem o estado, nem a policia, familiares, nada. É como se você estivesse enterrado vivo e ninguém sabe do seu paradeiro. 
Esse era o meu dia do “rapa” (varrer e limpar a cela). Terminado o rapa estava eu sentado num “pufe” (qualquer pedaço de qualquer coisa improvisada que serve pra sentar), esperando a hora da “boia”, esperando o tempo passar e rabiscando umas coisas no chão, quando ouvi a voz vinda da “faxina” (detentos de facções que mandam nos demais).
- Gerson R Silva, se apronta pros “home” - Dizia a voz de um dos faxinas. A cela 06 parece que se iluminou, e eu demorei alguns segundos a absorver a coisa. Alguém o fez antes de mim e disse.
- Porra poeta, é você caraio, se apronta que você vai embora.
Tudo pra essas caras é você vai embora, pensei, porque já me disseram isso um bilhão de vezes desde que entrei nesse..., nessa “faculdade”.

Quando os “home” te chamam pra alguma coisa, não especificam se se trata de uma audiência, uma forca, liberdade, tomar umas, sei lá.... de forma que ninguém sabe exatamente o que vai encontra pela frente. O fato é que ninguém vai esperando flores num paraíso. A coisa é sempre “pica” como dizia Bizil. Até porque se liberdade fosse a chamada seria diferente. Os home te manda um “pipa” (bilhete) informando-lhe sobre a “Lili” (liberdade), e definitivamente não era esse o motivo de meu chamado, até porque era minha primeira saída da cela desde que ali estava.
Bizil me acalmou dizendo liga não Poeta, dos males o menor, pelo menos de agora em diante você fica sabendo o tamanho da “pica”.

- Vai lá – disse ele. Poe uma roupa bonita e vai ver o que os homi quer com você, mas cuidado hein, qualquer coisa você nunca ouviu falar em Bizil ok. E soltou uma gargalhada de desconfiança e encorajamento ao mesmo tempo. Bizil era um dos meus “simpáticos”, caras próximos da gente. Caras do qual podemos confiar. Tínhamos muito em comum.
Preso a cinco anos por estelionato, paradoxalmente ele mesmo dizia que ninguém fica preso mais que dois anos por 171, a não ser que seja um expert como ele.

Fiz a barba correndo, a seco mesmo e me enfronhei da roupa de moda que reina naquela passarela, calça de brim amarela e camisa cumprida idem. Quando cheguei na “gaiola” (local que antecede o raio da saída pro interior da cadeia), acompanhado pelos “irmãos”, um dos guardas me algemou e fomos andamos por um corredor enorme, tipo malzoléu mesmo. O mesmo que caminhei no sentido oposto três meses antes. Sair do Raio 04 naquele dia seja pra o que fosse, pra mim já era um alivio. Poder ver pessoas diferentes, mesmo que policiais, era desconcertante, mas diferente e o coração batia num compasso diferenciado. Incrível o que três meses enclausurados faz com a gente. E pensar que há pessoas que prendem passarinhos.


Meu coração se acelerou quando me puseram numa alcova, uma espécie de chiqueiro de 2x2, onde esperei por 2 horas em silencio. Podia ser a liberdade? Quem sabe. Mas o certo é que nessa altura a coisa era pica mesmo. Algo de muito podre, além do cheiro da cela, estava a minha espera e eu respirava medo, angustia e uma inquietação enorme. Minha mãe sempre diz que vejo flores no asfalto, mas naquele dia, não pude ver flores naqueles corredores.
13hs da tarde e a boia já tinham sido servidas. Bizil se encarregou, ele mesmo de servir naquele dia, posto a minha ausência. Outro dia eu o ajudaria em outra coisa. Do nada um guarda bateu com o cassetete na grade, abriu e me conduziu novamente para outra sala onde eu iria falar com um Oficial de Justiça.  Disse pra eu esperar que logo um oficial me atenderia. A essa altura eu já estava preparado ate pra uma perpetua, quando uma mulher alta, bonita (apesar de que naquela altura, qualquer mulher se parece bonita), direta o objetiva entrou do outro lado do vidro e disse, gritando pelos buracos mínimos que há entre esta sala e a outra que da pra rua.

- Gerson Rozalino da Silva?
- Sim senhora. Eu disse.
- Há uma audiência no Fórum de Osasco pro senhor no dia 10 de Dezembro. Quer assinar aqui, por favor.
Antes que eu pudesse perguntar alguma coisa, ela, do outro lado do vidro fez um x no local e me disse, usando gestos, que o policial ia me entregar uma copia daquilo e com ele a acusação pra que eu tomasse conhecimento do  “tamanho da pica”. Entrei calado e sai mudo.
Apesar do ambiente ser, pra quem esta do lado de dentro, ameaçador e intimidatorio, o melhor coisa nessa hora é manter a calma e ficar calado. Tudo o que me restava era assinar a intimação da audiência e levar comigo pra cela uma copia da acusação. Coisa que tanto ou mais do que eu, irmãos e Bizil estavam curiosíssimos pra saber.

Ate porque a coisa estava ficando meio duvidosa com relação a quem eu era de fato naquela altura dos acontecimentos. Ninguém fica três meses sem saber porque está preso. Mesmo um indigente. Eu levantava serias suspeitas de espionagem. Quem sabe ser um agente infiltrado. Começaram desconfianças de que eu pudesse ser um policial e que estava ali apenas pra colher informações, coisas desse tipo. E se uma rebelião acontecesse nesse meio tempo, na falta de tu vai tu mesmo e ninguém ia querer ter provas de nada e o Poeta já era.

O fato é que aquilo acabou me salvando e deixando meus colegas mais tranquilos em saber da minha real identidade. Mesmo antes de mim, Bizil foi o primeiro e ler. Subiu na “gaiada” (Beliche de concreto onde dormem os presos), e como um orador, disse alto e em bom tom:


-Bandido dos bão o Poeta hein pessoal!
Sempre fui muito reservado, mas naquele momento já me acostumara com a “falta de deselegância” como dizia Bizil. É natural que eles se preocupam com quem estão lhe dando, temem o que já disse acima.  Mesmo Bizil sendo muito próximo, cabe a ele, saber quem eu era de fato pra poder passar pros irmãos minha conduta. E Bizil começou a ler aquilo pra que toda a cela ouvisse, posto que há muitos que não são letrados, mas talvez e principalmente por isso, fazem questão de saber da (verdade).

17 vitimas só numa ripada meu velho Poeta, Caralho! Você deve ter algum guardado lá fora hem meu velho... Sete processos... É meu velho, acho que “superestimei” sua ficha. Você é bandido mau. Parabéns e é nóis na fita.
Fui estudar, ler e analisar mesmo tal documento apenas a noite. Deixei que ele passasse por quem quisesse, isso me dava certo respeito porque eu estava sendo “nítido e transparente” com os irmãos e não me importava que soubessem  quem eu era de fato. O fato é que o papel andou tanto e em tantas celas que chegou meio molhado, mal cheiroso e amassado quando retornou.  

Era um documento com sete paginas. Perdi o sono obviamente me fixando na primeira pagina. Nesta há o mandato de prisão, a intimação e os possíveis locais onde poderiam me encontrar. Nesta pagina havia a relação de meus últimos seis endereços e um que me trouxe de longe lembranças doces que não me deixaram dormir de vez. Um endereço muito antigo, não sei onde eles acham isso, mas que nem me lembrava mais: Rua 01 de abril, bairro Pereira Jordão, Andradina-SP.

Como queriam me achar num bairro que morei aos seis anos de idade? Antes de continuar a leitura me veio a mente coisas que estavam enterradas, esquecidas a tempos com relação aquele endereço. Lembrei-me desse bairro como se morasse nele ainda. O cheiro dos pães que minha mãe fazia nos fins de semana. Eu sentado num ladrilho avermelhado da sala, vendo meu pai chegar cansado e me abraçar. Dizia a ele que queria trabalhar como ele pra que tivesse também cabelos brancos como os dele. Mamãe sempre se orgulhara de seus cabelos e os afagava com tanto carinho que pensei que isso, e apenas isso era o que conquistava o coração das mulheres. 

Lembrei-me do cheiro da terra, a tardezinha quando chovia, dos pomares, dos medos de ir além do que a visão podia ver. Meu mundo era umas três quadras, nada mais. Lembrei-me das voltas que meu pai dava comigo de bicicleta. Ele me punha no cano, de forma que eu pudesse também dirigi-la. Da forma de como ele me protegia com os pés e com as coxas e ao mesmo tempo me ensinando a andar sozinho. Pude sentir o cheiro nítido do delicioso suor do peito de meu pai naquela madrugada e chorei por ela adentro como uma criança só e indefesa. 

Eram quatro da manhã quando Bizil, cochichando, me deu um toque e disparou. - Se segura ai Poeta, isso é “deselegante”. Bandido não chora rapá - dizia ele. Vou fingir que não vi isso ok.
Acendemos um cigarro e ele foi me contar suas historias. Quanto a mim, eu já sabia o porquê de estar naquele lugar, sabia que nada tinha a ver com os crimes da qual fui acusado, deixei pra ler o documento no dia seguinte. Os crimes descritos naquele documento já não faziam muita importância, o destino cuida das coisas amigo. Eu cometera muito mais crimes do que os que estavam naquele papel. Crimes que não são julgados por juízes. Bizil iria se cansar de mim em breve e eu dele, porque ao que tudo indicava, minha estadia seria longa e penosa. Outro cigarro e Bizil começou sua ladainha, mas isso é outra historia,  assim como os crimes que realmente me manteriam ali.

Nenhum comentário:

Postar um comentário