quinta-feira, 8 de março de 2012

A Máquina de Viver.

Hoje eu acordei. E tem sido assim a mais de 50 anos. Mais que obvio afirmar que haverá o dia em que isso não acontecerá mais, ai me perco pensando que esse dia poderia ter sido hoje. Não que eu tenha uma queda pela morte ou instinto suicida, bem o contrário. Acho que há milagres que acontecem todos os dias, como o que aconteceu hoje: acabei de acordar. Nesse momento me sinto meio que privilegiado que o resto dos mortais. Não há nada de errado, é como se eu tivesse acabado de nascer, um bebê de verdade. É estranho, mas nesse momento não vem pensamentos que não sejam bons, tipo crianças, filhos, a lembrança de um amigo (nessas horas ligo pra alguns), de uma risada, do meu carro, de uma boa leitura, das coisas legais que vou fazer hoje, e das que fiz ontem. Não há medo, lembranças ruins, pelejas ou agouro, a sensação é de que o melhor da vida ainda nem começou. 

Há nessa hora a sensação do que Osho e tantos outros hindus dizem sobre o estar “acordado”. Você sente e ouve todas as coisas com uma nitidez mil, como um super-homem. Dai o dia se inicia e as coisas não são mais as mesmas, você vai meio que sentindo menos as coisas, sua sensibilidade diminui. Você precisa viver e, depois do banho e do café, as coisas ficam meio mecânicas. O próprio banho é um mecanismo robótico. Já reparou que você faz sempre tudo igual, todos os gestos, todos os dias. Você começa seu banho e termina exatamente do jeito que foi feito ontem. Quantas coisas não fazemos mecanicamente. E quando termina e toma seu café, você começa a andar, a fazer coisas e a máquina da vida poe-se a funcionar e você perde a “consciência”. É como se você voltasse a dormir. Você faz as coisas e percebe que sua sensibilidade não é a mesma de como quando você estava acabando de acordar. Durante o dia, às vezes, tenho vontade de acordar.

Quando acabo de acordar, de manhã, toco meu corpo em partes que sei que ontem doíam, hoje parecem estar bem. O ventilador continua rodando e lá fora parece que chove, como ontem. Fico pensando o oposto disso. E seu eu não tivesse acordado. O cheque da dona Tereza ia voltar mesmo, eu não estaria no banco pra cubri-lo na segunda. Demorariam dias pra perceberem minha ausência e só daí é que abririam a porta. Meu cadáver provavelmente estaria, além de morto, com um odor de três ou cinco dias sem banho.

Antes disso, mesmo com o ventilador ligado, baratas passariam em cima de mim e eu não notaria. O notebook já teria-se desligado por falta de energia e minha alma já estaria negociando lá em cima questões de pra onde vou e tudo mais. Eu não queria tocar nesse assunto, mas não dá pra falar de morte sem questionar pra onde vamos. Não acredito em eternidade, aliás, em nada que seja verdade absoluta. Isso de passar a eternidade seja em céu ou em inferno é coisa de doido. Alias céu e inferno são coisas de doido. Mesmo que eu fosse um anjo eu não desejaria passar a “eternidade” em céu algum. Simplesmente porque é muito tempo. Você fazer uma única coisa aqui embaixo por muito tempo já é um saco, imagina uma eternidade, de qualquer coisa.

Bom e já que estamos em questões de além vida, vamos falar da morte seriamente. Há uma coisa pior que a morte: morrer em fins de semana. Quer dizer, pode-se morrer no fim de semana, mas que você seja enterrado na segunda ou terça feira. O que é complicado é o cara morrer numa quinta e ser enterrado na sexta, por exemplo. Passar o fim de semana enterrado não está com nada. Pedro, grande amigo e grande boêmio, mais boêmio que amigo, morreu numa quinta feira ano passado. Fiquei triste porque o conhecia e sabia que ele estaria puto, não com a morte, mas com o fato de ter que passar o fim de semana enterrado. Em países desenvolvidos há leis que obrigam, não o morto, a família do morto, a enterrá-lo apenas na segunda feira, caso ele morra numa sexta. Deixem que “feda-se”.

Raul tem uma música linda que fala da morte-mal-morrida, numa homenagem a Drácula. Fico pensando em quantas pessoas vivem nesse estado em vida. Há pessoas que já morreram de fato e estão por ai apenas existindo, como uma porta, um caderno ou uma rua. E pior, tem gente que não se dá conta de que está morto. Ele imita o humano em quase tudo, mas está morto. Só não foi enterrado ainda. Dogmas e conceitos pré-definidos fazem com que as pessoas morram antes da morte. E essa é a pior morte porque, não gasta-se com enterros, mas é insuportável viver plenamente ao lado de uma pessoa que já morreu. Todas as desavenças, guerras e desuniões foram cometidas por pessoas que já morreram. E há uns que lutam pra ficar em tal estado, gritando alto para que todos ouçam suas razões, seus conselhos, seus sofrimentos, suas mágoas. Deveria haver uma lei que permitisse a pena de morte para os que já morreram.

Isso de morte mal morrida é como casamento. Estive em três e dizem poxa, mas não deu certo nenhum! Claro que deram certo, tão certo que me separei quando começaram a não dar. Assim, há pessoas que vivem a vida como se apenas existissem, elas não “vivem” de fato. Claro que há exceções, mas o cara fica num casamento durante 50 anos tão somente por causa de filhos, dogmas, religiões, famílias, dinheiro e tudo mais o que ele inventar só pra dizer que está “casado” e que sua relação deu certo. Isso é a morte mal morrida. Viver é outra coisa, é acordar de manhã e continuar o dia sentindo intensamente as mesmas coisas que sentiu ao acordar. Viver é presenciar o milagre que é acordar, respirar, ver, sentir, pensar enfim. A morte acontece quando você não sente mais isso, esteja você com 20 ou 70 anos de idade.

Não sei quem disse que há homens que nascem póstumos, acho que foi Nietzsche. Acho isso muito sábio e verdadeiro. Fiquei pensando nisso durante todo o dia e resolvi escrever sobre esse assunto as quatro da tarde com a intenção de testar minha lucidez, não que eu esteja gagá ou me sinta velho. É claro que o texto está uma merda e eu nem sou nenhum Machado de Assis e nem pretendo, não em breve, ser um imortal da academia. Mas se consegui chegar até aqui me lembrando disso, é porque ainda, mesmo depois dos 50, velho de guerra e as quatro da tarde, me sinto como se tivesse acabado de acordar.

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